quinta-feira, 10 de junho de 2010

De Corpo e Alma




Autora: Gloria Perez
Direção: Roberto Talma, Fabio Sabag e Ivan Zettel
Direção geral: Roberto Talma
Período de exibição: 03/08/1992 – 06/03/1993
Horário: 20h30
Nº de capítulos: 185

Curiosidades: http://memoriaglobo.globo.com

O eixo central abordado pela telenovela De Corpo e Alma foi a questão dos transplantes de órgãos. Não foi a primeira telenovela a tratar do assunto do processo de transplante de órgãos, tecidos e parte do corpo humano. Em nossas pesquisas, foi interessante observar, que em todos os anos em que se têm a aprovação de uma nova lei a respeito do tema, têm-se uma telenovela tratando do assunto: 1968, 1982, 1997 e 2001.

Em 1968, Redenção promoveu o primeiro transplante de coração na ficção televisiva, a telenovela pôde realizar com sucesso o que na realidade da prática médica brasileira ainda não se conseguia fazer, embora já se vislumbrasse essa possibilidade. Nesse sentido, a novela antecipou a concretização de uma experiência que viria tornar-se procedimento cirúrgico de rotina.

Em 1971, O Homem que Deve Morrer, de Janete Clair, fazia referência ao

transplante de coração. O personagem principal, vivido por Tarcísio Meira era o cientista, médico, que devolve a vida, que é capaz de “ressuscitar” uma pessoa substituindo-lhe o coração; um extraterrestre que encarna a força do bem e traz a evolução para a espécie humana. Inicialmente, Janete Clair tinha a intenção - vetada pela censura- de construir através da personagem principal uma alegoria da vida de Cristo.

Vinte e um anos depois, De Corpo e Alma,vai ao ar. Focando o processo do transplante.

Tematizando a questão, a autora faz um deste ponto a história principal da telenovela.

No início, a novela recebeu diversas críticas pela reação dos familiares e

amigos da doadora que tratavam a receptora como se ela tivesse adquirido traços da

personalidade daquela que se fora.

De fato, no início havia, propositadamente, esta confusão. Ao consultarmos os resumos publicados pela Revista Contigo!, vemos que as primeiras emoções do envolvimento amoroso entre Paloma e Diogo deram-se porque ela guardava o coração de Betina, a amada do nosso herói. Assim, ele a levou para morar no apartamento daquela que ele amava, a fazia vestir as roupas dela, tratava-a como se fosse a outra, por vezes até trocava seu nome.

Encontramos mais três críticas favoráveis ao desenvolvimento da trama e à

seriedade com que o tema estava sendo tratado.

1. Revista Contigo!, 01 de setembro de 1992, p. 12 (“Paloma escapa da

morte... Graças ao coração de Betina”, relata como a telenovela expressou a angústia de alguém que espera por uma doação e depois o medo por que passa quando o momento é a possibilidade de rejeição do organismo. Por fim,ressalta como a ficção demonstrou ser possível voltar a viver uma vida normal);

2. Revista Amiga, n.1158, junho de 1992 (“Tema da novela De Corpo e Alma

coloca novamente em discussão a necessidade do transplante. Coração: um

por todos, todos por um”, ressalta a importância desta telenovela, principalmente por tratar de um tema desconhecido pela população. Traz o depoimento de algumas pessoas que gostariam de declarar-se doadoras, mas que confessam

não saber como fazer isso. Informa ainda que o Incor prestará apoio para que se divulgue, na ficção, esclarecimentos de como prestar doações ou cadastrar-se numa fila de espera. p. 22.;

3. Também na mesma edição da Revista Amiga:“Autora ouviu transplantados antes de começar a escrever”, esta reportagem traz um relato de como se deu o processo de pesquisa sobre o tema, contando com depoimentos da autora e da personagem transplantada. p. 24.).

Entretanto, o trabalho de Glória Perez parece ir na direção da desconstrução do

estereótipo e das crenças. As ações que se seguem às confusões iniciais desenrolam-se

justamente para desfazer a impressão em Diogo - e nos demais - de que Betina vivia em

Paloma. Ao final da trama, o casal protagonista vive a sua união sem qualquer confusão.



Pesquisas apontavam que na época, depois de dois meses e meio sem

qualquer doação, com a repercussão da novela, o Hospital das Clínicas (SP)

recebeu cinco doações e, depois delas, mais quatro. A partir do que acompanhamos através das críticas e dos resumos, acreditamos que a história se desenvolveu rumo à desconstrução da crença e do estereótipo, tendo contribuído, ainda, para a divulgação de informação sobre o assunto, bem como para a conscientização da população, estimulando a doação de órgãos.

Além de abordar o tema do transplante e da doação de órgãos, a autora apresentou também, na trama, a inversão de papéis entre homens e mulheres na atualidade. Para isso, usou as boates de striptease masculino e acabou ajudando a popularizar o Clube das Mulheres, que proliferaram no país.

Mas de todos os temas polêmicos, a novela De Corpo e Alma foi palco de outra mobilização nacional, que jamais foi prevista pela autora Glória Perez. No decorrer da novela, a jovem atriz Daniella Perez, filha de Glória, foi brutalmente assassinada pelo seu colega de elenco, Guilherme de Pádua e pela mulher dele, Paula Nogueira Thomaz, na fatídica noite do dia 28 de dezembro de 1992, uma segunda-feira.Durante a semana seguinte ao crime, Gilberto Braga e Leonor Bassères, assumiram a responsabilidade de escrever os capítulos e dar uma solução para o desaparecimento dos personagens.Depois de uma semana, Glória Perez retomou seu trabalho e aproveitou para incluir mais dois assuntos polêmicos na trama: a morosidade da Justiça e a inadequação do Código Penal.

As últimas cenas de Daniela Perez como Yasmin, na novela, foram ao ar no último bloco do capítulo 146, no ar em19 de janeiro de 1993, uma terça-feira.




O assassinato da atriz teve repercussão também em outros

países. No entanto, menos de 48 horas depois de ter assassinado Daniella, Guilherme de Pádua é solto por força de um habeas-corpus. De acordo com a legislação da época, matar não dava cadeia: os criminosos tinham direito de esperar, em liberdade, por um julgamento que podia ser adiado indefinidamente — bastava ter bons advogados, que soubessem explorar as brechas da leis e utilizar o número infinito de recursos para atrasar o andamento do processo.Em 1990 entrou em vigor a lei dos crimes hediondos: uma espécie de listagem de crimes que deviam ser levados a sério. Para estes, que eram tidos como os mais graves, a prisão era imediata e não se admitia o pagamento de fiança. Crimes ambientais como matar botos, papagaios, animais que faziam parte do patrimônio, era crime hediondo -matar gente, não. Assassinato não entrou na lista. Por isso, Guilherme de Pádua estava solto. Então, como diz a própria Glória: “descobri um dispositivo da constituição que permitia à sociedade fazer passar uma lei, desde que a reivindicação fosse assinada por uma certa porcentagem da população do país”. Começou aí, a redação de uma emenda, a impressão e a distribuição de um abaixo assinado, numa época sem internet e sem contar com o apoio de nenhum grande órgão de imprensa, feita de mão em mão. Gente de todo o país escrevia, pedindo as listas, que eram passadas em repartições, escolas, shows, nas ruas mesmo, uma mobilização social ,para a coleta de assinaturas que atingissem o percentual exigido para a mudança da lei.

Foi uma campanha encabeçada por mães que perderam seus filhos em situações de violência, que se dedicaram a esclarecem a população dessa falha da Lei Criminal e se mobilizaram para evitar que outras mães viessem a passar pela humilhação e constrangimento de ver os assassinos de seus filhos livres, leves e soltos pelas ruas .

Em três meses apenas,foram reunidas 1.300.000 assinaturas -a lei só pedia 1.000.000. E foi levado ao Congresso. Assim nasceu a primeira emenda popular da História do Brasil. Na prática, o que ela fez foi igualar a vida humana à vida dos botos e papagaios. Tudo bem, já é alguma coisa!

Guilherme de Pádua e a mulher, Paula Thomaz, aguardaram julgamento, foram julgados e condenados a 19 anos e 18 anos e 6 meses, respectivamente, de cadeia por homicídio duplamente qualificado e praticado por motivo torpe. Cada um cumpriu apenas 7 anos e atualmente estão em liberdade.


Gloria Perez mantém dois blogs onde escreve sobre o caso, disponibiliza documentos de arquivo, videos, audios e detalhes do processo: http://daniellafperez.blogspot.com/ e http://www.gloriafperez.net/


_________________________________________________________________________________________________

[Fontes: Boletim de programação da Rede Globo, números: 1021, 1028; ANTENORE, Armando. “Globo usa caso Daniela Perez para vender Of Body and Soul” In: Folha de S.Paulo, 05/05/1993; APOLINÁRIO, Sônia. “Glória Perez vai criticar o Código Penal em novela” In: O Globo, 12/02/1993; BITTENCOURT, Sandra. “Um garçom é a eminência parda do jogo de sedução” In: Jornal do Brasil, 03/10/1992; BRAGA, Teodomiro. “Rede americana de TV divulga o assassinato para 211 países” In: Jornal do Brasil, 06/01/1993; “Corpo tem produção de TV portuguesa de Marinho” In: Folha da Tarde, 13/08/1992; “De Corpo e Alma mantém índices” In: O Estado de S.P, 07/01/1993; FERNANDES, Ismael. Memória da Telenovela Brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1977, p.390; “Leonor e Gilberto: o fim da missão” In: O Globo, 10/01/1993; “Homenagem no adeus a Yasmin” In: O Globo, 20/01/1993; “Mãe da atriz continuará escrevendo a novela” In: O Globo, 30/12/1992; “Males do coração e homens-objeto dão tempero à nova produção da Globo” In: Jornal do Brasil, 01/08/1992; MEMÓRIA GLOBO. Dicionário da TV Globo, v.1: programas de dramaturgia & entretenimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003; “Novela pede prisão de primários” In: Folha de S.Paulo, 05/03/1993; “Tragédia é notícia em Honk Kong” In: O Dia, 02/02/1993; “Vereza volta como garçom misterioso” In: Folha da Tarde, 10/08/1992]



Por Adriana Rodrigues

Nenhum comentário:

Postar um comentário